III 
  Nessa minha última investigação, me parece demasiado necessário tratar de assuntos mais simples antes de prosseguir nestes que aparentam ser tão complexos e que muito exigem de meu frágil raciocínio.
  Quando pensamos em magia, entidades, símbolos e coisas semelhantes, parecemos ignorar algo relativamente simples como a linguagem. Farei uma breve exposição sobre o tema sem objetivo de alto aprofundamento, apenas como modo de dar ao leitor uma pequena lâmpada para que possa vislumbrar o caminho que estou tecendo sem correr o risco de se perder.
  Alan Moore disse certa vez em um de seus documentários, que um livro de magia é um livro de linguagens. Embora eu já possuísse essa noção há alguns anos, foi só recentemente ao ver tal afirmação, que as peças soltas em minha mente pareceram criar vida, e buscar umas as outras de modo a formar uma peça única. Com efeito todo nosso pensamento se dá em linguagem, eu diria com certo temor que todo nosso pensamento é feito em enunciados. Por exemplo, se desejo pegar algo sobre a mesa, dou a ordem ao meu corpo como enunciado, mesmo que me esqueça em seguida de ter feito, assim como quando digito esse texto penso cada enunciado segundos antes de escrevê-los. Usando esse raciocínio quando penso espíritos e quando analiso os enunciados sobre o mesmo, percebo está constantemente preso ao enunciados e aos pseudo-enunciados. Sim todo enunciado, como já lhe diz o próprio nome, deve enunciar ou dizer alguma coisa, porém muito do que dizemos acerca de questões metafísicas não são capazes de dizer algo, e sempre que nos esforçamos para falar do além mundo de forma clara, acabamos por falar do mundo.
  Quando por exemplo falamos de Deus, sempre falamos do mundo e de nossas experiências do mundo, se digo por exemplo “Deus é misericordioso” só posso compreender isso por ter a experiência em primeira ou segunda pessoa de ações ditas misericordiosas, sendo que a mesma se dá no mundo(com efeito se é misericordioso em um tempo e  espaço). Se digo ainda que Deus é onisciente, mesmo que eu não tenha a onisciência no mundo, eu possuo a ciência e tudo que preciso fazer é pensar essa mesma ciência em um extremo. O mesmo se daria com o fato de eu ter uma formiga no mundo, mas não ter no mundo uma formiga-castor-gigante, mas poderia facilmente pensar uma por ter em minha mente a ideia de formiga, de castor e de grandeza. Porém talvez a frase que melhor se aproxime de um pensamento justo sobre Deus seja “Deus é”, porém essa frase é muito pouco dedutível, podemos analisa-la de inúmeras maneiras e sempre que fizer isso recorrerei ao mundo. Segundo a tradição enquanto possuir um corpo, não poderei pensar Deus ou qualquer coisa de cunho além-mundo.
  Ainda falando daquilo que pode ou não ser pensado, quando digo “Deus é misericordioso” será que posso compreender de fato o que isso significa? Analisemos a frase, o que posso dizer sobre Deus sem submetê-lo ao mundo? A Hermética dirá que Deus é indizível, icgnoscível e parece ser impossível afastar esse pensamento, assim sendo, tentemos falar da misericórdia, podemos falar dela? Será a misericórdia, Justiça, o Bem e outras coisas atribuídas a Deus e as ações de alguns homens, pensáveis? E o que é a justiça ou a misericórdia? Podemos dar uma explicação sem recorrer a exemplos(mundo) ou que abarque tudo que é justo ou misericordioso? Essas questões morais são tão metafísicas, ao meu ver, quanto Deus. Então sobre tais temas abandono e continuo a minha investigação sobre a linguagem.
  Voltando a afirmativa de Moore, e à compreensão de certas ideias não podem ser ditas, mas apenas mostradas por exemplos( justamente por não pertencerem ao mundo precisamos de algo que lembre por semelhança ou analogia) que parece desvelar-se a nós o funcionamento das ritualísticas primitivas e visão espiritualistas que perduram até os dias atuais. Grande era Atenas, onde os homens eram reconhecidos por sua sabedoria, ou até queriam ser sábios. Mas como podiam representar essa sabedoria? como os espartanos poderiam representar a guerra? Como poderiam representar o amor? Talvez os poetas creram que com seus cantos resolveram esse problema, talvez Platão creu resolver, talvez ainda haja alguém que acredite que possamos dizer a justiça, a liberdade ou o amor sem necessitar recorrer a exemplos ou poesias.
  O que é um ritual se não uma soma de enunciados que visam ao final chegar a uma conclusão? Quando o adolescente que compra os almanaques com receitas mágicas desenha sob si um círculo, e sobre si coloca uma pena de Pavão tentando puxar para si toda a ideia de beleza que aquela pena aos seus olhos carrega o que ele está fazendo, se na montando materialmente uma cadeia de enunciados, tal como em encantamento mudo? Ou os atenienses que alimentavam e usavam corujas em seus cerimoniais a fim de se tornarem mais sábios? Ou até mesmo os nordestinos brasileiros que matariam essas mesmas corujas se pudessem, a fim de espantar a morte?
  Objetos não carregam ideias, a coruja leva a esperança de sabedoria a quem dela espera a sabedoria tal como leva o temor a morte a todos os nossos vizinhos do interior do nordeste que ouvem seu piar a noite. Os objetos em nossos rituais são enunciados, são ideias, afirmações transformadas em símbolos talvez, para educar os que eram desfavorecidos intelectualmente e que lotavam os templos e seus sábios com problemas.    Como ensinar a quem está sempre ocupado com o trabalho braçal ou logístico as deficiências da linguagem e a busca de um poder não imediato, um conhecimento reflexivo? “Ensinemo-los nossos saberes, mas sejamos didáticos, dissemo-los que devem buscar a justiça e façamos dela uma deusa a sempre vigiá-los. Demonstremos como transmutamos nosso espírito, mas de modo que possam ao seu modo acompanhar, façamos objetos, imagens e até mesmo usemos drogas para auxiliar espíritos tão incapazes” Assim creio pensaram os antigos quando divulgaram seus saberes aos círculos externos, e assim ainda pensamos hoje, ainda falamos com Atenas e ainda tememos os daimons.

  Onde fica então esse mundo espiritual se não em nós mesmos? O que são todos esses espíritos se não uma manifestação do que temos dificuldade de traduzir sobre o mundo e sobre nós? O que é toda a ritualística se não um modo primitivo e falho de desvelar aquilo que nós ocultamos? Ora se compreendermos esses espíritos, esses Samael, Asmodeus, Atenas, Jesus e tantos outros em nós mesmos, será que precisaremos dessas vestimentas ultrapassadas e de significados perdidos no tempo?
  O que é um banimento, se não uma teatralização física do que queremos nos livrar em nossa mente? Imaginamos o punhal ameaçando nossos medos, imaginamos a água lavando nossos temores. O que são os ataques espirituais se não a ideia que não pode ser facilmente traduzida travestida de símbolos e deuses? Para que havemos de querer um mundo espiritual se já temos um mundo grande e desconhecido em nosso próprio espírito?
  Não quero por meio desse texto afirmar nada a vocês, apenas alfineta-los e despertar uma ou outra reflexão, de modo a quebrar os grilhões que lhes prendem tão fortemente as tradições e aos maus poetas.

1 comentário(s):

Unknown disse...

Sempre tive essa ideia de que tudo e fruto da mente, mas em um coletivo pulsante, vivo.
Nos rituais de banimento faço a projeção do que quero colocar pra fora do circulo, pois minha capacidade não me permite deixar tudo "esterilizado". Porque como disse, mesmo que sonhe ou realmente tenha uma projeção para participar de uma iniciação, com conhecidos num mundo "astral"... So vai me restar um aprendizado que ainda tenho que provar-lo a mim. Ótimo Texto.

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