II
   Analisemos um texto poético para a partir dele tratarmos sobre a questão dos espíritos e da evocação;
 
Era mais ou menos duas horas da manhã de um sábado. Lord Vincus estava em seu quarto meditando, e os únicos sons que se ouvia era o de cantos gregorianos que eram gerados pelo seu computador, mas que pareciam sair de todas as paredes.
  O jovem magista deitou-se de barriga para cima e então algo lhe ocorreu. Estava dormindo e ao mesmo tempo consciente de tudo ao redor.
Primeiramente sentiu um grande peso sobre seu corpo que lhe esmagava o espírito, conforme lutava para levantar o peso migrava paras as partes que continuavam na cama como a perna e a cintura, quando finalmente levantou-se completamente, contemplou sua própria imagem inerte, e em um determinado momento o corpo que a pouco utilizava já não lhe interessava mais.
  >> Fechei os olhos, desejei visitar os montes onde um velho amigo habitava, e ao abrir os olhos, eu lá estava.
  O chão de pedra era cortado por fios d’água cristalinos, toda a água partia de um único local, uma caverna mais adiante, o sol brilhava no alto de um céu alaranjado ornado de duas luas, o clima era muito agradável.
Ao me aproximar da caverna ergui as mãos e evoquei a chave vincuniana sob meus pés, o símbolo brilhou forte em tons de verde, e foi então que declamei o encantamento sagrado.
Um grande rugido foi lançado para fora da caverna, este som embora assustador, fez meu coração expandir-se em força e vontade. Decidi entrar, lá dentro estava muito escuro, e ao chegar a um determinado ponto, dois olhos vermelhos muito brilhantes iluminaram o local. O dono desses faróis era um enorme réptil coberto por escamas verdes reluzentes, o pescoço e as costas possuíam ossos afiados brotando sem ordem, suas asas estavam abertas, o que lhe deixava ainda maior, e de sua boca lotada de dentes escapava uma fumaça acinzentada, que por vezes encobria seus bigodes de carpa.
  Coloquei-me à frente da fera, que aparentemente não demonstrava nenhum raciocínio, mas sua imagem despertava um misto de respeito e serenidade. Estando diante do dragão, desejei olhar através dos olhos dele; e assim ocorreu, ao invés de vê-lo, via a mim mesmo. Não como costumo ver as coisas, mas de alguma forma também enxergava com o olfato.
   Eu via um humanoide, muito vermelho e brilhante, possuía um cheiro metálico que me abria o apetite, rapidamente deixei a visão do dragão e voltei a mim.<<
Espigueiro: Há quanto tempo não lhe vejo, e não ouço aquela evocação sem nenhuma beleza ou harmonia.
Lord Vincus: Ora Esmeraldino, se esquece de que eu era ainda jovem quando compus aquilo?
Espigueiro: Você ainda é jovem Lord Vincus, jovem e tolo, mas dentre a maioria dos humanos, ser seu guia não é uma opção tão desagradável.
Lord Vincus: Vejo que seu bom humor continua intacto, mesmo depois de um ano sem minhas visitas.
Espigueiro: Tenho vida muito longa em relação aos seres mais jovens, um ano terrestre não é nem de longe uma grande espera, mas em relação ao período de visitas que você costumava fazer, sim, faz muito tempo.
Lord Vincus: Não vamos ficar jogando conversa fora, não sei quanto tempo conseguirei permanecer separado do meu corpo denso, então vamos ao que interessa.
Espigueiro: O que deseja Lord Vincus, pelo espírito, apreender?
Lord Vincus: Quero que me ajude a melhorar minhas habilidades e conhecimentos.
Espigueiro: Até que suas habilidades sejam consideradas dignas de serem chamadas assim, levará muito tempo e será muito trabalhoso, mas posso ajudá-lo a seguir por esta via meu jovem pupilo.
Lord Vincus: Por onde começo guardião?
Espigueiro: Você precisa aprender muito, e há condições não suficientes, mas necessárias que está ignorando. Comece revendo seus apetites, pois muito permanece em ti daquilo que constitui as bestas, e disto devia se envergonhar. Cuide também de teu intelecto, que embora tenha feito bom avanço, ainda continua rudimentar, estude a natureza, pois conhecendo o anjo alcançará o arcanjo.
  Treine Lord Vincus, treine como se uma batalha iminente estivesse à tua espera, tenha-se sempre atrasado, esteja sempre a exercitar a guerra.
  Afaste-se dos vícios que drogam o cérebro, dos excessivos vapores da carne que embebedam o espírito, e que sempre nos deixam temerosos quanto à nossa imagem perante os iguais e superiores, pois o Bem ou aquilo que se faz de boa fé, não envergonham a Alma.
  Não bastam à saúde e o intelecto em ato para a eudaemonia, mas as coisas que são vergonhosas ao espírito devem ser evitadas, aquelas coisas comum à mente humana, como os vícios do corpo e tudo aquilo que choca os espíritos dos viventes. Pois a eudaemonia é egoísta, não deve ser feita à custa de outros ou visando-os.
  Pois apreende agora meu filho, antes que seu corpo pereça e teu espírito se esqueça, pois é tendência do espírito tornar-se esquecidiço, como uma criança traumatizada, que se esquece de suas mazelas e substitui suas memórias por inúmeros símbolos e manifestações de seu passado, sejam de forma dolorosa ou não dolorosa.
  >> Minha projeção passou a oscilar, minha visão foi tornando-se turva, mas meus supra sentidos foram brevemente recuperados.<<
Espigueiro: Teu corpo o chama, ainda está intoxicado de teus maus costumes, vejo que não poderás mais ficar aqui por muito tempo.
Lord Vincus: Oh velho dragão, me ensine a ser virtuoso e cheio de sabedoria.
Espigueiro: Primeiro precisa limpar teu espírito, e para isso, lhe ensinarei o fogo esmeraldino.
 

  >> A enorme fera inspirou fundo e soltou seu hálito sobre mim, fui tomado por uma chama esverdeada, que fez meu coração expandir-se ao ponto de parecer explodir.
  Nesse momento, eu parecia estar ciente do que deveria fazer, levantei os braços, respirei profundamente, e quando finalmente expirei, levei do meu coração uma energia que misturava coragem, amor e determinação para a palma de minhas mãos, me senti poderoso enquanto a energia me subia pelos braços e minavam das minhas mãos derramando um líquido em chamas, de cor verde sobre todo o meu corpo, a chama descia pela minha pele e ao tocar o chão voltava a subir, senti todo o peso que me corrompia o espírito desprender-se com leveza e misturar-se com o ar.<<
 
 Espigueiro: Leve este exercício contigo, um exercício simples, indigno daqueles que se são grandes, mas para um jovem como tu, é de grande valia, use-o para purificar-se, para purificar tua casa e para purificar tuas ferramentas... Como prova de nossa identificação leve esta última pérola com você:
“Oh Humanos perecíveis, embriagados pelo vinho sem mistura da ignorância, cuja realidade limita-se aos olhos sensíveis, e quando pior, a fé não é posta sob a razão. Oh, corais humanos, despertai, pois o sofrimento desmedido e o não zelo pelo intelecto adoece a vossa alma. Oh, pobres sentimentalistas, 'ofensíveis' e efeminados, pobres e fracos, olhai no espelho à sombra da Magnificência, à sombra Demiúrgica, ansiosa por liberdade e respeito. Não matem o homem e a natureza por idealismo, idealizem um homem melhor de forma não destrutiva. Que verdades possuem aqueles que ainda sofrem? Que bens podem oferecer, que já não ofereceram a si mesmos? Crescei e multiplicai seus conhecimentos e horizontes, pois não só de pão vive o homem, já que este não é só corpo, é intelecto também, e esta parte queima de desejo pelo conhecimento."
>> Após calar-se, o dragão expeliu uma onda de fogo sobre mim, fui impulsionado rapidamente de volta, e quando voltei, foi como tivesse saltado de uma grande altura que ao bater no chão, fez meu corpo parecer subir alguns centímetros.
Eu estava mais leve, momentaneamente me sentia mais leve, como se a chama do dragão tivesse clareado e aquecido meu espírito.<<”

(Lord Vincus,Viajem ao dragão esmeraldino, A Casa-ocultismo, 2012)
  O autor usa-se da liberdade poética, mística para transmitir uma ideia moral, espiritualista e até mesmo magicista. Apesar de ser um texto para um público mais jovem, muito pode ser extraído do mesmo, se bem analisado.
   É narrado nesse texto em um primeiro momento, um exercício meditativo e a partir dele a suspensão da consciência para algo que não aparenta ser o mundo natural do personagem
 “o sol brilhava no alto de um céu alaranjado ornado de duas luas, o clima era muito agradável.”
  Um leitor mais afoito, creria rapidamente que o mundo descrito de fato existe, ou pior, não seria capaz nem ao menos de alcançar o que o texto de fato traz, daria atenção apenas às insinuações de projeções ou sobre um dragão falante. Tomaria rapidamente o texto como verdadeiro, não o analisaria, não de fato o leria.
   O que podemos inferir do texto, se ousarmos desvelar o que não é facilmente compreendido? O texto escrito possui somente a ideia de uma projeção, um dragão e um mundo estranho a oferecer? Bem parece que apenas análises superficiais parecem ser capazes de fazer os muitos que se dizem ocultista, ao menos, é isso que se torna evidente quando se propõe a comentar e divulgar sobre assuntos diversos seja sobre mitos, religiões ou até mesmo ao conjunto de textos da hermética.
   Voltando ao texto citado(pois é mais fácil), o autor tem por objetivo pregar uma visão espiritualista onde os vício do corpo supostamente atrapalham o desenvolvimento do espírito, logo atrapalha o sujeito enquanto ocultista ou magicista, e que tais vícios e dificuldades, acabam por ser culpa do próprio sujeito. Após um sermão dado pelo Dragão(que aqui faz o papel de mentor) ele lhe ensina uma técnica totalmente voltada a projeção de sensações para a purificação e banimento.
   As questões que devemos levantar são; como esse autor chegou à técnica de purificação?(supondo que não lhe fora revelada por um espírito) Como sabe que ela é de fato eficaz? Como saber que a descrição de um mundo espiritual, de modo geral é correta?
  Vejamos de onde partem as teorias sobres os espíritos e o além-mundo. Toda teoria desse gênero, sem dúvida parece partir de três modos possíveis, quando não nos referimos a comentadores. Parecem partir de revelação espiritual, dedução racional ou criação poética.
  A revelação espiritual sobre os espíritos e seu mundo é a mais comum de se encontrar na literatura, e que a mais deve ser rejeitada pelos ocultistas. Muito embora afirmem ser essa minha afirmação absurda, devemos questionar até que ponto a revelação espiritual de um terceiro é válida, uma vez que esse terceiro pode na melhor das hipóteses ser um doente mental e na pior das hipóteses o espírito pode ter lhe enganado sobre tudo que lhe fora revelado.
  O modo racional muitas vezes é ligado a revelação espiritual. Não era incomum entre os pensadores do medievo, tentar provar o que era dito pelos primeiros evangelistas e suas revelações por meio da razão(coisa que muito observamos na escolástica), não sem motivo que era muito comum fazer uma leitura bíblica utilizando-se de pensamentos aristotélicos ou platônicos.
  O ultimo modo, muito comum, é o uso de termos religiosos para tornar o pensamento mais didático para a massa, mais palatável, ou até mesmo usa-se da poesia mística por uma simples questão estética. O problema deste modo é que a massa que ascende às tradições acabam por tomar boa parte dos círculos internos, ficam presos a visão poética e acabam por passa-la a frente, tornando o ocultismo em um ocultismo de facebook, um antro de alucinados e maus poetas.
  Dentro dos três modos, parece não haver nenhum que seja confiável, uma vez que o primeiro temos que ficar a mercê da crença na honestidade de um espírito além da crença na saúde mental daquele em que algo foi revelado. No segundo modo não se usa do raciocínio para chegar a uma conclusão, mas usa-se da conclusão para montar raciocínios o que facilmente nos leva ao engano (embora seja o modo mais seguro) e o último é falso desde o início. Esse problema não é observado por mim, já fora observado pelos bons ocultistas há muito tempo, e três soluções foram dadas para tentar resolvê-lo, as apresentarei agora;
  A primeira diz que o homem é capaz de sair de seu próprio corpo, e uma vez fazendo de si mesmo um espírito, pode por si mesmo vislumbrar o mudo espiritual e aprender sobre ele. Esse método que é muito querido entre os adolescentes e os espiritualistas de facebook(a diferença entre um e outro é mínima) é assaz problemático, como mostrarei agora. O que me garante que a projeção não é uma construção mental do sujeito, tal como ocorre aos moradores dos manicômios, sendo que a diferença entre um e outro é o desejo do delírio? Como diferenciar a projeção de um sonho? Com efeito, não é incomum enquanto sonhamos, julgarmos-nos acordados e no mundo, e se somos enganados enquanto sonhamos (e quando acordados), que garantia temos que em projeção(caso não seja um sonho) estamos de fato vendo o mundo espiritual ou não estamos criando-o ou nos enganando de outro modo?
  O segundo modo desenvolvido pelos neo-hermetistas é a partir do principio de correspondência ou da analogia hermética, ou seja, observando o mundo material(ou médio) podemos por analogia compreender o mundo espiritual, já que ambos possuem um mesmo criador e são regidos por leis mesmas(que diferem em grau de execução). Esse método é mais racional que o primeiro, e mais provável de nos levar algum conhecimento de fato.
  O último modo, e o meu preferido, é a rejeição completa de um além mundo, e a compreensão de que mesmo que esse exista, não pode ser alcançado pelo homem em vida(Como já dizia Platão, Tomás de Aquino e outros) e por isso qualquer esforço para alcança-lo é inútil, cabendo ao ocultista então ocupar-se do mundo e do que o mundo vela, sem gastar sua vida em busca de outros. Dentro dessa ótica ainda, os autores antigos que possuíam forte influência do orfismo, criam que o mundo espiritual era transcendente, de modo que se levássemos uma vida de investigações e reflexões, nossa alma acostumar-se-ia ao saber e quando morresse-mos poderíamos transcender e desvelar o mundo espiritual(mas só após a morte).
   *OBS; Há ainda o modelo cabalístico, mas por ser um ignorante do tema e não possuir meios de estudar a cabbalah em fontes confiáveis e em seu idioma materno, irei me abster sobre a mesma.

  Partindo disso, toda experiência, toda literatura e toda afirmação sobre espíritos, que cansam de se contradizer a depender de quem fale disso, parece perder o sentido de ser discutido. Porém, ainda temos um longo caminho a percorrer nesse texto e não devo me cansar agora, ainda me resta dar um último parecer sobre espíritos e falar melhor sobre banimentos.

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